quarta-feira, outubro 27, 2004

Ninguém vê o que tem, só vê o que não tem

Cheguei a casa depois de mais um dia, estava arrasado… Das colunas o Miles debitava aquilo que o fez ficar famoso, apetecia-me beber e fumar, por isso abri uma cerveja e acendi um cigarro. Talvez não fosse a melhor ideia pois doía-me os cornos como tudo, sentia que a minha cabeça ia explodir a qualquer momento, mas o trompete mágico acalmou-me, além do que meti uma aspirina no buxo com as primeiras goladas de Super Bock. Ela tinha ficado de passar cá por casa mas não sei por onde é que andava, não me preocupei, deixei a minha mente deambular pelo dia frio que tinha passado. Na rua encontra-se sempre a mesma escumalha do costume, as mesmas putas do costume, e os mesmos cabrões do costume. Trabalhava a atender pessoas para as quais não tinha a mínima paciência, nem vontade de falar.
Não fazia nada de cansativo apenas extramamente entediante; para piorar andava a dormir pouco por noite, quatro a cinco horas, e mesmo assim não tinha tempo para fazer tudo o que queria.
A cerveja a esta altura ia já a meio mas não me sabia a nada de jeito, não estava a sentir-me lá muito bem, apetecia-me sair de casa e andar por aí, mas ao mesmo tempo só queria era ir dormir. Foda-se ando com a cabeça não sei onde, devo ter um aspecto terrível, parece que fui desenterrado, mas também estou-me a cagar.
Os cigarros sucediam-se à cadência das músicas do Miles, parecia que só estava bem envolto numa névoa do meu próprio fumo e cheiro; a minha casa também parecia uma tenda de circo, mas depois do espectáculo dos elefantes ter passado por lá, só jornais espalhados por todo o lado, qualquer dia pego fogo acidentalmente a esta merda toda e depois quero ver como é que me safo.
Na secretária os envelopes com contas acumulavam-se, ao lado dos cd’s todos a monte, realmente eu é chapa ganha chapa gasta, também que se foda quando a guita acabar, como sandes, assim como assim é ao que me ando alimentar ultimamente.
Nalgum ponto passado parece que me desviei do caminho, não sei se tomei o pior mas certamente tomei um diferente. Ando a deambular por aí mais pareço uma morto-vivo, nem sei por quanto tempo mais o iria aguentar não fosse tê-la encontrado. Mas não quero pensar muito nisso porque já sei como sou e a tendência que tenho de rebentar com todas as coisas realmente boas da minha vida.
Apesar de tudo nunca me deu para cortar os pulsos, o máximo que me dá para fazer às vezes é meter dois valiums para dentro e esperar que me atinjam como uma pedra; fico estendido na cama durante horas num sono sem sonhos, sem imagens, sem alma quase. Ainda assim seria interessante verter umas gotas de sangue só para ter a certeza que ele pulsa mesmo nas minhas veias. Necessito de provas que sou um ser vivo, pelo menos de vez em quando. Sémen, suor, lágrimas sei que tenho, mas sangue, quente e vermelho, chego a duvidar.
O telemóvel toca, do outro lado uma voz que me acalma e faz querer continuar, diz que me irá ver dentro de poucos minutos; levanto-me a custo do sofá e abro a janela para purificar um pouco o espaço; cheira a fumo de tabaco, a lençois maltratados por duas pessoas a foder e a vinho derramado; os cheiros mais constantes dos últimos tempos na minha vida, no fundo os cheiros que me acompanham de dia e de noite…

segunda-feira, outubro 18, 2004

Caderno

Linhas azuis sobre um fundo branco, imaculado; assim é este caderno antes de começar a escarafunchá-lo com uma caneta.
Como uma tela em frente ao indeciso pintor, o caderno sabe ao que veio. Seja romance, diário, poemas ou simples pensamentos, à medida que às suas páginas vão sendo escritas, o seu fim vai também ficando mais perto.
Um caderno sem nada escrito é triste, é sorumbático; pede-nos que o levemos e o enchamos seja lá do que for…
A visão de um caderno limpo dá-me sempre vontade de o sujar com qualquer coisa nem que seja enchê-lo de hieróglifos indecifráveis para todos, menos para mim e esse caderno. Nasce uma cumplicidade entre os dois, o caderno e eu; uma relação por vezes indiferente, por vezes intensa a ponto das relações de amor-ódio.
O caderno abre-se para nós como uma prostituta perante o cliente entesado que lhe paga, sabe que ali está para sucumbir aos caprichos e desejos do ser armado com um instrumento de escrita ou desenho.
Tal como uma meretriz de tempos mais honestos e sinceros, também o caderno guarda e sabe guardar segredos dentro de si; nada há que não lhe possamos confidenciar.
O caderno alimenta-se desta caneta como uma vara de porcos de uma manjedoura; suga a sua tinta sofregamente como uma imberbe que ainda não sabe fazer broches; mas suga ainda assim tudo o que esta caneta tem para lhe dar.
Por vezes penso no que aconteceria se os cadernos por esse mundo fora revelassem os seus conteúdos – provavelmente deixaríamos de existir como raça e consequentemente condenaríamos também os cadernos à morte. Talvez não à morte física pois se não os queimarmos ou afogarmos, os cadernos continuam como coisa material; mas certamente, sem homens e mulheres a quem roubar palavras, esses mesmos cadernos veriam a sua alma despedaçada.
Tenho para mim que será por essa razão que os cadernos não falam, não se oferecem ao mundo por dá cá aquela palha, mostrando os segredos neles inscritos; trata-se do mais básico e antigo de todos os instintos: o da sobrevivência – sem homens os cadernos não vivem.

quinta-feira, outubro 14, 2004

Antes de mergulhar no esquecimento

Ainda sentia o cheiro dela entranhado na minha pele, o gosto da boca e dos seus seios bailava nos meus lábios; uma noite tão longa que tinha passado num flash momentâneo; as minhas fundas olheiras contrastavam com o sorriso permanente na minha boca.
A vida cá fora na cidade continuava caótica, filas para apanhar o eléctrico, gente desesperada a cada virar de esquina, deficientes com esgares perversos e olhos vítreos a passear no museu, polícias a passar de carro indiferentes a todos: no entanto a mim parecia-me tudo novo e dislumbrante.
Encontrava-me num estado de abençoada harmonia e felicidade, ainda que uma latente melancolia se fazia notar por não estar com ela.
As horas que não tinha dormido, começavam a fazer-se sentir no meu corpo, doía-me tudo como se fosse um velho de 66 anos; no café ao fumar cheguei mesmo a sentir uma leve tontura provocada certamente pela nicotina inalada demasiadamente depressa.
Tinha-me sentado no canto mais distante da sala vazia, duas estudantes, universitárias, entraram e sentaram-se na mesa ao lado. Eram belas mas a mim desinteressavam-me tal era a minha indolência e abstracção. Embora a cabeça me latejasse levemente, encontrava-me disperto, disperto como há muito não estava, num plano superior.
O pescoço doía-me mais que tudo o resto, tremia embora não estivesse frio, mas o meu espírito estava longe dali. Acabei o segundo cigarro e fui-me embora, as universitárias olharam-me de soslaio e sorriram e eu apenas lhes consegui lançar um aceno quase de indiferença.
O ar fétido de um esgoto que transbordara atingiu-me directamente fazendo-me voltar à terra abruptamente. O cansaço começara a instalar-se violentamente, andava trôpego como se estivesse bêbado, mas só pensava em tê-la adormecida nos meus braços, e poder-lhe acariciar o cabelo e as costas nuas.
Para onde me levaria esta rainha do cool? Que alegrias e infortúnios iria fazer-me passar? Ah fuck it e rock n’roll, só se vive uma vez e aquilo que tiver de ser será.
O pulsar do meu coração senti-o agora como se tivesse corrido os 100 metros em menos de 10 segundos, as tremuras continuavam como se estivesse a ressacar da “heroa” e um frio estranho instalara-se na zona da barriga fazendo com que os meus orgãos internos se debatessesm só para trabalharem o mínimo indispensável.
Por mais paixões que se tenha tido é incrível o que certa mulher nos consegue fazer sentir; como se de um turbilhão se tratasse em que a adrenalina dispara e sentimos medo, desejo, frio, calor, terror, coragem, tudo em milionésimos de segundo durante horas intermináveis até a encontrarmos novamente. Aí, nesse momento em que a vimos como se fosse a primeira vez, até o próprio tempo pára; tudo faz “rewind” e volta-se a pôr em movimento em “double speed”.
É lindo, maravilhoso e assustador ao mesmo tempo; não consigo pô-lo em palavras; só consigo pensar em tocá-la outra vez sentindo a sua pele fundir-se com a minha. São estes os caminhos misteriosos e tortuosos do Senhor, ou lá de quem quer que exista para lá da eternidade.
Neste momento sinto febre a aflorar o meu ser, tenho de descansar um pouco; fechar os olhos e não pensar em nada, sentir apenas o vento a acarinhar a minha face. Quando os abrir novamente talvez tu estejas lá, e possa sentir uma vez mais os teus lábios, antes de mergulhar no esquecimento.

terça-feira, outubro 12, 2004

A vida em 3D

Cheira mal aqui, porra, e eu não sei se é de mim ou se é desta miúda aqui à minha frente… Bem de mim não deve ser, tomei banho à cerca de uma hora, mas estou com tanto sono que ainda nem consigo distinguir de onde vêm os cheiros; foda-se então só pode ser mesmo dos pés desta gaja. Que merda, uma miúda tão jeitosa a cheirar assim, também se vê logo pelo aspecto geral que ainda não se deitou, deve ter andado na farra, mas este cheiro é que não pode ser. Isto a mim tira-me logo a tesão toda, não sei porquê sou um gajo bastante sensível aos cheiros dos outros, as feromonas em mim têm um efeito lixado; comigo, se não gosto do cheiro já vai ser díficil interessar-me por alguém.
Estas pequenas viagens nos transportes públicos têm muitas vezes acontecimentos particularmente interessantes – o velho louco e suado que só diz asneiras, a miúda gira que cheira mal dos pés, o mamilo erecto por baixo de uma t-shirt sem soutien de uma atraente nórdica, o palrar descontrolado dos turistas espanhóis que acabam por sair sempre na paragem errada. Coisas destas dão um colorido diferente às minhas manhãs, aliás não é por acaso que me levanto meia hora mais cedo, estas viagens de transporte público são me necessárias, para poder vislumbrar a fauna existente por aí na cidade. Podia muito bem ir no meu carro, ou de táxi, ganho suficientemente bem para isso - seria demasiado entediante, ao menos assim sempre vou vendo a miséria alheia, a miséria materializada nos outros mas que eu sinto cá dentro.
É para isto que andamos aqui às voltas? Para sermos uns seres amorfos sem vontade, como eu me sinto?
Penso que quando morrermos a nossa vida passar-nos-á toda à nossa frente em três dimensões, portanto acho melhor que tenhamos bons momentos para ver… No meu caso para além das bebedeiras monumentais, das mocas ainda maiores, e das fodas monumentais (foram poucas, para ser franco) não tenho mais nada de interessante para ver, não há nada de verdadeiramente belo ou sublime nesse filme que passará em Cinemascope quando eu morrer.
Quando acabei o liceu virei-me para os meus pais e perguntei: “Então e agora?”, eles responderam:”Vai tirar um curso”; acabei o curso voltei a perguntar-lhes o mesmo e eles disseram para arranjar um emprego. Consegui arranjar estabilidade num emprego a ganhar imenso, e voltei-lhes a perguntar:”E agora?” – e eles:”Sabemos lá, casa-te!”.
Assim fiz, é claro que não durou nem dois anos; pelo menos não tivemos filhos, o que teria sido mau. E agora? Bem agora aqui ando eu, trabalho cada vez menos, bebo cada vez mais, e tenho cada vez menos paciência para esta merda toda.
As pessoas que conheço são todas desinteressantes, as mulheres com quem me envolvo não têm nada dentro da cabeça, também se calhar por isso é que se envolvem comigo. Descobri há muito tempo que gosto de foder e isso é algo de que não abdico, mas cada vez mais até o sexo me sabe sempre ao mesmo. O amor, esse anda escondido em esquinas estreitas, só pode; mas também nem sei se é disso que ando à procura, aliás acho mesmo é que não ando à procura de nada.
Nada me escandaliza, nada me chateia; se uma mulher engraça comigo e eu engraço com ela, jantamos, bebemos uns copos e fodemos ou não!
Leio, vejo televisão. como, cago, vou ao cinema, apanho bezanas e grandes mocas, fodo, vomito; tudo com a mesma sensação de vazio, de indiferença; não há música, poema ou pintura que me arranque deste torpor maldito. Não sorrio, esboço com esforço um esgar para não parecer mal, sinto-me a maioria das vezes encurralado e apetece-me gritar, e penso que estou a ficar louco. Por isso sinto-me bem ao pé dos outros loucos que andam no metro e no eléctrico, ao menos ao pé desses eu não destoo. Destoamos e desbotamos desta sociedade estranha e mal cheirosa em que vivemos. Os loucos somos nós que de entre todos, nos estamos a cagar para essa mesma sociedade, “brotherwood of man” ou lá o que lhe quiserem chamar.
Abençoada demência e dormência que se instalou na minha vida, destruindo o meu bom senso e regras de conduta impostas pelos outros; graças a qualquer desígnio misterioso sou mais inconformado, revoltado e preguiçoso que os demais, mas também mais iluminado.