quarta-feira, janeiro 05, 2005

O riso dos loucos

"Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que seguem por ele"

O vinho tinto tinha-me dado volta à cabeça e estava quase a dar-me volta ao estômago; não sei porquê desde há uns tempos a esta parte parecia que não aguentava bem a bebida, ficava sempre mal disposto e com dores de cabeça.
Tomei uma aspirina e passados 10 minutos tomei outra, estava cansado, com sono, mas não me queria deitar; a merda do dia-a-dia ia-se acumulando e estava a chegar a altura de fazer uma purga, desse lá por onde desse.
A chuva lá fora recomeçara com redobrada força, parecia querer esmurrar os estores e fazia-o na realidade, na televisão apenas dava mais do mesmo: reality shows e telenovelas, a mesma dieta televisiva desde há anos; não me decidia entre ir dormir ou ficar para ali a vegetar em frente ao televisor. A verdade é que também me começava a dar uma dor na barriga e dentro em breve iria quase de certeza cagar, o que sempre era alguma coisa…

O jantar dessa noite tinha corrido bem com pessoas simpáticas e comunicativas, estava era demasiado cansado para aproveitar ao máximo; cada vez via pior tanto assim que tive de usar os óculos durante toda a noite, caso contrário não teria visualizá-do parte dessa mesma noite. O aproximar galopante dos 30 anos fazia-se notar nestas pequenas coisas, se fazia uma noitada já sabia que no dia seguinte ia-me doer os ossos todos, a cabeça latejaria como se estivesse para explodir e as olheiras seriam fundas e negras como um poço sem fim.
Não havia drogas ou religião que me valessem, era um receptáculo que cada vez mais se enchia dos estímulos exteriores sem os filtrar, cuja preponderãncia era tal que sobejava cada vez menos espaço para a própria alma. Gostaria de poder vomitar toda a merda que tinha dentro de mim, como se dum orgasmo se tratasse; ao mesmo tempo que me viesse, nesse sémen sairia toda a imundice que estava entranhada no meu corpo e espírito.
A decadência e miséria grassa cada vez mais neste país sem futuro e a mim apenas me resta ver para onde vai a carneirada e escolher o caminho contrário; deus abandonou estas paragens já há algum tempo, sinto à minha volta as pessoas a ficarem cada vez mais dementes como se duma comédia de enganos se tratasse.
Manter a pouca sanidade que me resta é um esforço hercúleo e só possível graças a uma eficaz dieta baseada em tabaco, aspirinas e valiums, masturbação, cerveja e erva.
No entanto continuamos todos a rir como se nada fosse; a morte é algo que não nos atormenta, passamos dias inteiros a discutir futilidades, todos à espera nem sei bem do quê.

Oiço as crianças na rua a rir, um riso genuíno sem maldade, sem malícia, e não reconheço esse riso em nenhum adulto com quem prive diariamente. O meu riso, se assim o podemos chamar, é afectado, nunca descontraído; a maior parte das vezes nem rio, nem as desgraças dos outros têm graça para mim.
As pessoas estão cada vez mais cínicas e mais perdidas também, não sabem o que querem, não sabem para onde vão, mas vão atropelando tudo e todos à sua frente ou à sua rectaguarda.

As luzes apagam-se devagar à nossa volta, ninguém parece dar por isso, está tudo mais preocupado com o parecer bem, ir à discoteca da moda, ter o telemóvel da última tecnologia; já não há paciência para isto.