quinta-feira, dezembro 15, 2005

À noite todos os demónios me podem assaltar

Pego num lápis e com ele tento espremer o meu cérebro, mas de nada vale, não sai nada, nem desenho, nem palavras, nem sequer uma letra que se aproveite. Mais valia doar este orgão, e todos os outros meus já agora, à comunidade científica, mas tenho dúvidas de que se aproveitasse alguma coisa. Por vezes penso se o meu cérebro, não será um aglomerado de massa negra, ou pelo menos cinzenta, toda emaranhada, que eu continuo a estimular de vez em quando através de psicotrópicos, que em última análise vai escurecendo essa, já de si muito escura, massa.
Só posso chegar a esta conclusão pois se dizem que o cérebro é o orgão que nos controla, e que portanto controla a nossa vida, só posso ter uma massa disforme em vez de um cérebro, pois a minha vida é uma sucessão de atalhos e retalhos que não me levam a lado nenhum. Também verdade seja dita, não sei onde é que era suposto eu ir ou já ter chegado, mas questiono-me se seria aqui; penso que não, mas não tenho a certeza.
Tenho sido bombardeado a vida toda com imagens do que é suposto querermos, a casa com assoalhadas suficientes para estarmos bem acomodados, o carro que acelera dos 0 aos 100 em não sei quantos segundos, o emprego ou carreira que nos deixa com um sorriso nos lábios, a mulher perfeita; principalmente imagens da mulher perfeita. Mamas silicónicas e cus perfeitos, pernas longas e cabelos sedosos, lábios carnudos sempre desejosos de nos beijarem, sugarem, chuparem e nos dizerem o quanto nos amam. Que monte de merdas paternalistas me têm impingido ao longo dos anos, e eu tenho aceitado, sonhado e me masturbado ao som dessas imagens.
No fundo as coisas nem são assim tão más, podia ter a cara cheia de abcessos, ou ser um débil mental… Ah merda, pelo menos assim tinha uma desculpa, a verdade é que esta normalidade me enoja demais, este tédio diário é por demais sufocante. O meu problema é gostar de demasiadas coisas e fico completamente desnorteado enquanto ando a correr de um lado para o outro. Sou um inconstante sempre a tentar acalmar a minha alma consumindo; artigos de que não preciso, bebidas, drogas, pessoas, consumo de tudo em grandes doses e depressa, nunca saboreando, nunca deixando gotejar como mel o verdadeiro sabor. Ando sempre à procura do verme no fundo do copo de tequilha, mas já os tiraram todos, aos vermes, das garrafas. Agora para encontrarmos um verme basta dobrarmos a esquina, basta sair de casa e esbarrar com quem quer que seja; por aí, nessas ruas imundas de todas essas cidades do mundo, andam os vermes, os verdadeiros vermes sugadores.
A nicotina vai-se soltando da ponta do cigarro, entra-me nos olhos e faz-me chorar, dou mais uma passa para que esse fumo podre possa fazer-me chorar por dentro, mas já não sinto nada, estou morto, apenas espero a declaração do óbito, que tarda. Assim que a passar amigo médico, mande-me uma cópia para a casa da redenção, talvez ainda se possa aproveitar alguma coisa, talvez me dêem um canto não muito mau, quentinho de preferência, e que não tenha um cheiro nauseabundo. Aí ficarei a ver infinitamente a minha vida a passar em 3D, num grande ecrâ de plasma e com som Dolby Surround, uma maravilha tecnológica, para melhor me punir pelos meus pecados.
Enfim não vale a pena apressar as coisas, ainda estou vivo, pelo menos mais ou menos, se bem que por vezes tenha de parar um pouco para cair em mim e reparar até que ponto é que o estou realmente. Os meus sentidos funcionam todos menos mal, consigo ler os livros a que me lanço, talvez não os perceba realmente, mas leios, consigo cheirar a carne queimada quando espeto um cigarro acesso no meu braço, consigo ouvir os meus vizinhos do andar de baixo a foder, se bem que por vezes tenha de encostar um copo ao chão para ouvir melhor (não sei se posso chamar aquilo que eles fazem foder, pois é bastante calmo, calmo demais até), tudo o que bebo e como sabe-me sempre ao mesmo, mas pelo menos sabe a alguma coisa, e consigo sentir com os meus dedos quando uma mulher está ou não molhada no meio das pernas, se bem que possa não o ser por mim. Por este conjunto de provas consigo chegar à conclusão lógica que devo estar vivo, ainda por cima inspiro e expiro e se puser a mão sobre o peito sinto o coração a bater. Fisicamente, pelo menos, está tudo a funcionar como deveria funcionar; o problema então não deve estar aí, deve estar nalgum recanto da minha memória, se eu a tivesse.
Faz frio esta noite e já estou levemente embriagado, é chegada a hora de repousar esta minha carcaça a que chamo corpo e tentar ter um sono sem que muitos demónios me assaltem, e mesmo que eles venham não há problema, já estou demasiado cansado para os combater, mais vale encetar um qualquer acordo de cavalheiros em que, só durante o resto das noites que me restam, eles me possam assombrar.