quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Lá fora, ai fora

Estamos presos neste espaço que não deixa de ser exíguo, embora cada um de nós tenha um quarto só para si. Sentimo-nos de alguma maneira claustrofóbicos, eu pelo menos sinto-me, pois daqui não podemos sair para já, talvez um dia se quisermos, o que também duvido.
A quatro de nós foi-nos tirada, por processo químico reversível, a faculdade da fala, aos outros quatro foi a visão. Submetemo-nos a isto de livre e espontãnea vontade, pois queríamos escapar, fugir, abandonar uma vida que ja não nos dizia nada; e foi desta maneira que viemos parar ao Instituto.
A arquitectura do edífício faz com que cada “cego” apenas consiga privar com “mudos”, e cada “mudo” com os “cegos”, estando no máximo três pessoas juntas, não mais do que isso; como foi isto feito, construído, idealizado não me perguntem, é certamente obra de algum arquitecto genial, ou louco.
Os dias passam placidamente e para combater a depressão é-nos administrado um cocktail de drogas que nos leva à euforia, por vezes, ou a termos alucinações, de outras. Penso que a morfina e o LSD serão as mais usadas, se bem que existam outras, sintéticas, às quais nos têm submetido, como cobaias.
O objectivo por detrás desta experiência colectiva, não nos foi comunicado, mas certamente será mais um projecto para estudar o comportamento humano em situações limite.
Posso afirmar que, daquilo que tenho visto (pois faço parte do grupo dos “mudos”), os instintos primários são os que florescem em primeiro lugar, como se achássemos que fodendo, manteremos a nossa sanidade e humanidade. No fundo a vida aqui não difere muito daquela que vislumbrava lá fora, a diferença é que vamos largando os tabus e preconceitos que a sociedade nos vai inoculando, e que assim nos vai castrando, ao longo do nosso crescimeto.
Aqui somos verdadeiramente livres em termos morais, e isso é algo difícil de integrar e aceitar, quando passámos uma vida inteira sendo escravos dessa sociedade podre e hipócrita, à qual, agora, renegámos.
Libertarmo-nos é tão mais difícil do que se julga, que nos foi informado que três de nós já tentaram o suicídio, embora não saibamos que três foram esses, sabendo que não foram bem sucedidos. Tenho quase a certeza, por isso, que somos monotorizados a tempo inteiro, levando-me a concluir que a nossa liberdade de fazer o que queremos é posta em causa assim que tentamos fazer mal a nós próprios; essa é a única coisa que não nos é permitida, daí resultando que essa seja a única liberdade que as pessoas lá fora, aí fora têm ao contrário de nós.
De resto tudo nos é permitido e com o passar do tempo uma maior agressividade se tem vindo a evidenciar entre nós. Até o sexo se tem tornado mais violento, mais selvagem, como se nos estivéssemos a aproximar cada vez mais da nossa animalidade inerente, intrínseca, afastando-nos daquela humanidade à qual nos tentávamos desesperadamente agarrar.
A cada dia que passa, e será que é mesmo a cada dia, ou antes dias, vários dias; vou perdendo a noção de temporalidade; sinto que, aos poucos, os conceitos de passado e futuro se vão esfumando.
A linguagem dos índios Hopi não possui nenhuma palavra para “tempo”, o conceito de temporalidade linear é-lhes completamente desconhecido; o tempo para estes índios não passa de um espaço redondo, onde passado, presente e futuro coexistem em conjunto.
É assim que me sinto, não distinguindo entre dia e noite, dias ou semanas; vou fumando cigarros e lendo romances que põem à minha disposição, e evitando ao máximo o contacto com os outros; o estado depressivo vai-se instalando, aproximando-me cada vez mais daquilo que sentia quando estava lá fora, aí fora… A vida tem uma maneira curiosa de se manifestar, por mais voltas que dermos, por mais limitações ou liberdades que nos forem dadas, o que está dentro de nós vem sempre ao de cima; por mais que tentemos fugir, o monstro que se esconde dentro do armário da nossa mente, irá sempre saltar cá para fora e apanhar-nos.
Sei-o agora, mesmo que tenha sido necessário vir para aqui e mesmo que passe aqui o resto da minha vida, sei que existem pessoas que como eu, não foram feitas para viver lá fora, aí fora, no mundo real e doloroso.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

À noite todos os demónios me podem assaltar

Pego num lápis e com ele tento espremer o meu cérebro, mas de nada vale, não sai nada, nem desenho, nem palavras, nem sequer uma letra que se aproveite. Mais valia doar este orgão, e todos os outros meus já agora, à comunidade científica, mas tenho dúvidas de que se aproveitasse alguma coisa. Por vezes penso se o meu cérebro, não será um aglomerado de massa negra, ou pelo menos cinzenta, toda emaranhada, que eu continuo a estimular de vez em quando através de psicotrópicos, que em última análise vai escurecendo essa, já de si muito escura, massa.
Só posso chegar a esta conclusão pois se dizem que o cérebro é o orgão que nos controla, e que portanto controla a nossa vida, só posso ter uma massa disforme em vez de um cérebro, pois a minha vida é uma sucessão de atalhos e retalhos que não me levam a lado nenhum. Também verdade seja dita, não sei onde é que era suposto eu ir ou já ter chegado, mas questiono-me se seria aqui; penso que não, mas não tenho a certeza.
Tenho sido bombardeado a vida toda com imagens do que é suposto querermos, a casa com assoalhadas suficientes para estarmos bem acomodados, o carro que acelera dos 0 aos 100 em não sei quantos segundos, o emprego ou carreira que nos deixa com um sorriso nos lábios, a mulher perfeita; principalmente imagens da mulher perfeita. Mamas silicónicas e cus perfeitos, pernas longas e cabelos sedosos, lábios carnudos sempre desejosos de nos beijarem, sugarem, chuparem e nos dizerem o quanto nos amam. Que monte de merdas paternalistas me têm impingido ao longo dos anos, e eu tenho aceitado, sonhado e me masturbado ao som dessas imagens.
No fundo as coisas nem são assim tão más, podia ter a cara cheia de abcessos, ou ser um débil mental… Ah merda, pelo menos assim tinha uma desculpa, a verdade é que esta normalidade me enoja demais, este tédio diário é por demais sufocante. O meu problema é gostar de demasiadas coisas e fico completamente desnorteado enquanto ando a correr de um lado para o outro. Sou um inconstante sempre a tentar acalmar a minha alma consumindo; artigos de que não preciso, bebidas, drogas, pessoas, consumo de tudo em grandes doses e depressa, nunca saboreando, nunca deixando gotejar como mel o verdadeiro sabor. Ando sempre à procura do verme no fundo do copo de tequilha, mas já os tiraram todos, aos vermes, das garrafas. Agora para encontrarmos um verme basta dobrarmos a esquina, basta sair de casa e esbarrar com quem quer que seja; por aí, nessas ruas imundas de todas essas cidades do mundo, andam os vermes, os verdadeiros vermes sugadores.
A nicotina vai-se soltando da ponta do cigarro, entra-me nos olhos e faz-me chorar, dou mais uma passa para que esse fumo podre possa fazer-me chorar por dentro, mas já não sinto nada, estou morto, apenas espero a declaração do óbito, que tarda. Assim que a passar amigo médico, mande-me uma cópia para a casa da redenção, talvez ainda se possa aproveitar alguma coisa, talvez me dêem um canto não muito mau, quentinho de preferência, e que não tenha um cheiro nauseabundo. Aí ficarei a ver infinitamente a minha vida a passar em 3D, num grande ecrâ de plasma e com som Dolby Surround, uma maravilha tecnológica, para melhor me punir pelos meus pecados.
Enfim não vale a pena apressar as coisas, ainda estou vivo, pelo menos mais ou menos, se bem que por vezes tenha de parar um pouco para cair em mim e reparar até que ponto é que o estou realmente. Os meus sentidos funcionam todos menos mal, consigo ler os livros a que me lanço, talvez não os perceba realmente, mas leios, consigo cheirar a carne queimada quando espeto um cigarro acesso no meu braço, consigo ouvir os meus vizinhos do andar de baixo a foder, se bem que por vezes tenha de encostar um copo ao chão para ouvir melhor (não sei se posso chamar aquilo que eles fazem foder, pois é bastante calmo, calmo demais até), tudo o que bebo e como sabe-me sempre ao mesmo, mas pelo menos sabe a alguma coisa, e consigo sentir com os meus dedos quando uma mulher está ou não molhada no meio das pernas, se bem que possa não o ser por mim. Por este conjunto de provas consigo chegar à conclusão lógica que devo estar vivo, ainda por cima inspiro e expiro e se puser a mão sobre o peito sinto o coração a bater. Fisicamente, pelo menos, está tudo a funcionar como deveria funcionar; o problema então não deve estar aí, deve estar nalgum recanto da minha memória, se eu a tivesse.
Faz frio esta noite e já estou levemente embriagado, é chegada a hora de repousar esta minha carcaça a que chamo corpo e tentar ter um sono sem que muitos demónios me assaltem, e mesmo que eles venham não há problema, já estou demasiado cansado para os combater, mais vale encetar um qualquer acordo de cavalheiros em que, só durante o resto das noites que me restam, eles me possam assombrar.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Toda a necessidade tem um ego para alimentar

As ruas estão cada vez mais cheias de merda e lixo, principalmente lixo humano, no qual eu me enquadro totalmente, farrapo que sou, tão igual e diferente do meu semelhante. Bêbados, loucos raivosos, teens imbecis, velhas lamurientas a pedir esmola, coxos, aleijados e aleijões morais; todos correndo, fugindo de ou em busca de alguma coisa. O verdadeiro Armagedão não veio com cataclismos e fogo dos infernos, antes se vai fazendo notar lentamente a cada dia que passa.
Também eu fujo tentando refugiar-me em casa, mas o cheiro nauseabundo a carcaças humanas é virolento demais e chega aos céus, infiltra-se pelas rachas da parede e pelas frinchas das janelas. Não há droga ou vinho saboroso que façam estas brumas desaparecerem da minha mente; o cheiro a morte estás sempre presente, juntamente com os perfumes baratos das putas de esquina, e o odor pestilento dos vagabundos que vagueiam pela cidade ou que modorram nas entradas do metro sem se importarem com nada a não ser com o frio e a fome.
Os Prozac’s, os Xanax’s e os Valiuns apenas adiam a realidade, e tão bom que é por vezes alhearmo-nos deste mundo, desta vida, desta terrível merda em que estamos enfiados.
A moral morreu, a paixão não existe, apenas há a podridão, o negrume fétido da mentira ao qual nós, alguns, poucos, muito poucos, tentamos escapar.
No geral vejo as pessoas numa atitude de sabujos displicentes, tentando colmatar as suas deficiências emocionais com hipocrisia, carreiras fúteis na busca de dinheiro para comprarem, gastarem, consumirem, afogarem-se em nadas que vão esvaziando cada vez mais as suas almas. Enchem-se de roupas de marca e berloques esses humanos por aí, na vã esperança de conseguirem numa noite qualquer, numa baiuca qualquer, entre mais um copo e mais um charro, conseguirem ir com alguém para casa para foderem. Anda por aí tudo a foder como coelhos e sentem-se grandes homens e mulheres, não passando de ignorantes ocos por dentro.
Bem-vindos à era da masturbação colectiva, em que todas a necessidades têm um ego para alimentar; e eu vou com vocês por aí, masturbando-me e entulhando-me com as vossas mentiras e falsos moralismos.

sexta-feira, novembro 25, 2005

Valium. Sono induzido.

Valium. Sono induzido. Sono sem sonhos. Sono falso e que demora apenas algumas horas. Tomo dois com uma cerveja e deito-me esperando, mais ansioso do que queria, pela chegada desse sono, de qualquer sono.
A pouco e pouco a minha cabeça vai-se afundando na almofada, sinto o adormecimento a chegar, como se fosse um afogar lento e sem dor, sem luta da minha parte. Estou quente debaixo dos lençóis, a memória apaga-se, todo o sofrimento desaparece; sei que durará apenas algumas horas, mas no momento exacto antes de adormecer sinto-me melhor, sinto-me invencível, capaz das maiores façanhas.
A máquina apaga, faz shutdown, só mais logo haverá um reboot para mais um dia cinzento e frio. Tédio, a face amarela espreita no espelho, com dois círculos negros debaixo dos olhos. Se eu fosse uma personagem dos romances do Brett Easton Ellis teria alguma droga para me despertar e para me pôr a caminho; coca, ou speed ou um qualquer outro químico; mas como eu sou apenas eu, e vivo nesta parte desta cidade velha, que para lá de putas e lojas do chineses pouco mais tem, tomo um café; um fraco substiuto para estimulante, e encaminho-me para o metro, que para além de outras coisas e outros cheiros; como mijo, tem a particularidade de me mostrar seres humanos que ainda estão pior do que eu; ou será que estão? – Ali à frente deitado num banco, um jovem, mas com o aspecto de ter 40 anos, com muletas ao lado, cheio de abcessos na cara e no corpo; sei que está vivo apenas porque o peito levanta e desce quase imperceptivelmente; do outro lado da linha um bêbado, prega o fim do mundo, e ao mesmo tempo afirma que o Partido Comunista é a única solução para este país; ao seu lado 3 ciganas esperam ansiosamente pelo próximo comboio, com sacos enormes cheios de material de contrafacção que esperam vir a vender em qualquer uma das saídas de metro.
Que belo acordar e que belo dia este vai ser, durante as próximas 8 horas estarei num sítio em que tentarei desempenhar uma função para a qual não estou minimamente interessado em desempenhar. A meio do dia as costas começarão a doer-me, tomarei um comprimido para as dores; a pausa para o almoço será curta demais e no final, voltarei pelo caminho contrário ao que fiz de manhã, e depararei com gente em cujas faces verei o meu próprio desalento reflectido.
Abre-se a porta da rua e entra-se em casa, larga-se o casaco e a mala em qualquer canto; abre-se o frigorífico bafiento e descobre-se que pouco há para comer; também não interesssa, bebe-se uma cerveja.
Lá fora parece que está a chover, digo parece pois o som que sai das colunas está tão alto que nem sequer consigo ouvir as vozes dentro da minha cabeça… Não, há algumas vozes que sempre oiço, sobrepõem-se a tudo, seja som, imagem, drogas ou pessoas… Ligo o computador e vejo os mails, faço uma compra na internet. Fútil, fútil, banal, tédio brutal… Graças à chuva tenho 4 canais de televisão, é uma coisa que não sei explicar, a minha antena, só funciona bem com o mau tempo; mas também podia não ter nenhum que o resultado era o mesmo. Imagens atrás de imagens, às quais sou indiferente, apenas informação que o meu cérebro não assimila, e neste caso ainda bem.
Está frio, por isso não faço a barba, farei amanhã ou noutro dia qualquer, apenas dispo a minha roupa, e ao fazê-lo o corpo dá de si, doem-me os músculos todos, incluindo o meu caralho que parece ter sido crucificado. Fumo mais um cigarro, talvez a inalação da nicotina provoque tonturas, náuseas e me faça vomitar, só naquela de expelir qualquer coisa, para me sentir mais humano.
Já é tarde, segundo me diz o relógio são horas de dormir, mas não tenho sono; não que tenha grande vontade de ficar acordado, para quê? Ainda tenho valiuns é o que vale…
Valium. Sono induzido. Sono falso mas é o que resta e por isso tomo dois com um gole de cerveja…

terça-feira, setembro 06, 2005

O verdadeiro Horror

O medo, a inveja, a traição,
a vida tal como um qualquer Hamlet a sentiu,
o desespero da Morte face à ressureição,
o cobarde lutou, o bravo fugiu.

Neste mundo insano e estropiado,
encontramos às vezes, por acaso
quem veja as coisas pelo nosso lado
e que nos ajuda a suportar o fardo.
Embora o destino nos faça sentir como um exilado,
nada mais há a perder,
sem ser,
a sanidade por todos aceite.
Continuamos sempre para geral deleite,
recusando-nos realmente a ver,
a vida como ela é.
Perdemos os sonhos, matamos a fé;
como uma Ofélia que ficou e é louca:
louca de dor, louca de Amor;
tudo fazendo para não se sentir oca,
buscando algo mais do que o simples torpor
de viver uma vida de tédio, normal, amorfa e inócua.
O verdadeiro e único horror.

quarta-feira, agosto 31, 2005

In Vino Veritas

Estou bêbado mais uma vez, nestes últimos tempos tem sido uma constante na minha vida. Dos últimos seis dias, ou melhor das últimas seis noites, quatro delas fiquei bêbado, daquele género de beber um último gole e de seguida adormecer no sofá. As outras duas noites fiquei apenas “quentinho”; mais, ontem e hoje nem sequer jantei, apenas bebi vinho.
Maneira ridícula de afastar a dor, dirão alguns, mas não sei (ou não quero, ou não consigo) proceder de outra forma. Aliás o beber é só um dos aspectos, talvez até o mais aceitável; ontem por exemplo fiz pior: mutilei-me com um x-acto e escrevi a palavra LOVE no ombro. Desde que te conheci que esta é a terceira vez que faço este género de coisas, se bem que das outras vezes apenas me queimei com cigarros.
Não sei o que me leva a fazer isto, deve ser a mesma razão que me leva a ouvir músicas dos anos 80 e chorar e dançar. Chorar e dançar ao som do “Forever Young” ou do “The Power Of Love”… Ah a década de 80, essa década tão incompreendida e mal-amada, em que os casacos e blusões tinham chumaços nos ombros e em que os All-Star explodiram e toda a gente queria uns. Parece-me que em relação aos All-Star estamos a voltar a essa década, eu pelo menos tenho uns quatro pares comprados no último ano. Espero bem que os chumaços não voltem.
Mas os 80, que década!! A década do Basquiat, a década do declínio e morte do Warhol, a década dos Smiths, a década que viu morrer o Variações e o Ian, a década que viu nascer os New Order e os Happy Mondays e o fenómeno rave. A década das pastilhas e das outras drogas químicas, a década da traição e declínio dos Movie Brats. Em Portugal foi a década da libertinagem; uma geração inteira sucumbiu às drogas, mortos ou presos por causa delas. A década do Rock Rendez-Vous, dos Mão Morta e Pop Dell’Arte. Sem dúvida a minha década, se bem que a tenha passado numa cidadezinha saloia, a ir à escola e a ser um menino bem-comportado. Mas é a década de 80 aquela que mais me emociona, mesmo que seja ouvindo músicas Pop foleiras. É a elas que retorno quando estou em sofrimento.
É engraçado aos 21 anos quando sofri o meu primeiro desgosto de amor, passei dias inteiros a chorar e a dormir, quase nem comia, e não bebia definitivamente. Hoje aos trinta, embebedo-me, mutilo-me e oiço músicas com refrões orelhudos. Noto uma certa evolução, pelo menos sou mais pró-activo; não?
Sinto-me mal, não como grande coisa, dormir só se beber muito ou meter uns Valiuns; ando com umas olheiras de meter medo e emagreço a olhos vistos.
Cada vez me pareço mais com uma daquelas personagens masculinas que pululam nesses romances intemporais, romances esses povoados de amores impossíveis.
Posso dizer até que já sou mesmo uma dessas personagens romãnticas, só que em vez de viver num desses romances, estou condenado a habitar as páginas dos teus diários. Aí viverei eternamente; ou pelo menos até esses diários desaparecerem, serem deitados fora ou imolados pelo fogo.
Sinto-me velho e em termos cronológicos ainda não vivi nada… Trinta anos não são nada, mesmo que tenham sido vividos no limite, o que não é o meu caso.
Estou destituído de esperança, não mais quero sentir o que sinto agora; mas não sei amar de outra maneira. Talvez seja esta intensidade que afasta as pessoas de mim, ou talvez seja a minha incompreensão dos outros, ou então a minha existência tem uma razão de ser que é diferente da dos demais. Não sei… Sei que quero desaparecer, daqui desta cidade que amo, mas que agora me mete raiva, e me sufoca.
Esta cidade que é testemunha impassível de desgostos, de crimes, de violações, de suicídios e nascimentos; onde cada vez há menos lugar para o amor, pelo menos o amor verdadeiro.
Relações inconsequentes, acomodação, nada decidir; eis os valores actuais, e nós os sonhadores romãnticos, os seres diferentes ou especiais, estamos condenados a deambular pelos escombros das nossas vidas. De que vale então ser diferente, de que vale sonhar e acreditar no amor?
Neste momento vale muito pouco, a dor fala mais alto, e só me resta tentar afogá-la e silenciá-la.

domingo, julho 24, 2005

Somos o que amamos?

Bebo um gole de TriNaranjus de maçã pois tenho fome e nada tenho em casa que se coma, pelo menos nada que dê para comer imediatamente; até porque me sinto enjoado, com uma certa vontade de vomitar; ou foi de comer demais ao jantar, ou de ter fumado demasiados cigarros. Pensando bem estou assim devido à ansiedade que sinto, o que me levou a fumar mais cigarros do que fumo normalmente; tenho de deixar de fumar, para além de, provavelmente, me estar a causar um cancro, está a causar-me, isso sim, um rombo na carteira.
Espero, daí a ansiedade, por uma mensagem que não chega, por um olá de alguém, que nem sei se é real; para piorar as coisas hoje foi a noite em que um ponto final foi posto na minha história com Cristina. Não sei como as coisas chegaram a este ponto, mas sei agora, neste momento que será melhor assim, para ela e para mim também. Quando não conseguimos dar-nos a alguém, acabamos sempre por fazer esse alguém sofrer e isso custa-me a suportar, quer esse alguém acredite ou não.
Depois de Cristina sair, batendo violentamente com a porta, despi o meu robe turco amarelo, fiquei nu na minha sala, apenas as velas ardendo iluminavam a divisão fumarenta; vesti uns boxers, liguei a televisão e o DVD player, e dei por mim a ver o “Adaptation” do Spike Jonze. As imagens sucediam-se sem que lhes prestasse muita atenção, remexia distraídamente os meus testículos; sim todos os os homens o fazem, não sei explicar bem a razão: será que temos uma necessidade inerente, lá no fundo do nosso subconsciente, de termos a certeza em todos os momentos de que os nossos testículos se encontram lá, agarrados à nossa pila? Será que sonhamos ou receamos que “eles” possam ter decidido, por alguma razão, ir dar uma volta? Não sei, sei que o macho humano remexe nas suas “bolas” muitas vezes ao dia, na maioria dos casos sem o darmos conta.
A dada altura do filme salta uma frase que me desperta do meu torpor: “Nós somos o que amamos, não o que nos ama”. Este conjunto de palavras atinge-me, como um peido que nos sai do cu sem ter sido anunciado (é um paralelismo algo estranho, mas define bem aquilo que senti); e de repente dou conta de que nunca senti isso em relação a mim mesmo.
Sempre amei aquilo que os outros amaram em mim, ou melhor ainda, amei a ideia que os outros têm de mim.
Sinto-me desperto ao escrever isto, como se fosse uma verdade inabalável ou um Haiku ininteligível que resumisse a minha vida; e interrogo-me como posso adormecer depois de constatar esta realidade.
Se ao menos conseguisse ver-me pelos olhos dos outros, perceber aquilo que os faz afirmarem o que afirmam, por vezes apenas horas após me terem conhecido... Tenho passado a minha vida a pensar que sou uma pessoa de difícil compreensão, mas de vez em quando cruzam-se pessoas na minha existência que me lêem como um livro aberto. Pelo menos lêem aquilo que eu gostaria de ser, mas não tenho assim tanta certeza de que estejam a ler correctamente; possivelmente não estão a juntar as sílabas como deve ser, trocam palavras, alterando assim todo o sentido do texto, que no fundo sou eu.
Como é possível pessoas acharem que eu sou um ser extraordinário para em seguida, semanas ou meses depois, prosseguirem as suas vidas como se eu nunca tivesse existido? As poucas pessoas extraordinárias que conheci pessoalmente, marcaram-me de tal forma que ainda hoje sou afectado, sou assombrado por elas, pelos seus fantasmas. Não estarão todas essas pessoas por aí erradas acerca de mim? Não estarei eu completamente equivocado acerca do meu próprio ser? Chego a esta idade e penso que afinal, por mais coisas que tenha visto, ouvido ou lido, não sei nada acerca de mim; e muito menos acerca dos outros.
Não serei apenas mais um ser humano com mais perguntas do que respostas? Sou certamente – especial, não vejo onde está essa sparkle que mexe tanto com os outros. Será que o meu tédio omnipresente faz com que os outros fiquem confundidos e pensem que eu sou um homem profundo, sensível, mais em contacto com a vida? São todos doidos certamente – o mundo à minha volta, e para lá disso, enlouqueceu e esqueceu-se de me avisar.
Também quero ser louco, partilhar dessa demência que faz com que sintamos que pertencemos a alguma coisa ou a alguém: quero-me imiscuir nesse flow de gente e barulho e sentimentos e desgostos, risos loucos e choros amargos.