quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Lá fora, ai fora

Estamos presos neste espaço que não deixa de ser exíguo, embora cada um de nós tenha um quarto só para si. Sentimo-nos de alguma maneira claustrofóbicos, eu pelo menos sinto-me, pois daqui não podemos sair para já, talvez um dia se quisermos, o que também duvido.
A quatro de nós foi-nos tirada, por processo químico reversível, a faculdade da fala, aos outros quatro foi a visão. Submetemo-nos a isto de livre e espontãnea vontade, pois queríamos escapar, fugir, abandonar uma vida que ja não nos dizia nada; e foi desta maneira que viemos parar ao Instituto.
A arquitectura do edífício faz com que cada “cego” apenas consiga privar com “mudos”, e cada “mudo” com os “cegos”, estando no máximo três pessoas juntas, não mais do que isso; como foi isto feito, construído, idealizado não me perguntem, é certamente obra de algum arquitecto genial, ou louco.
Os dias passam placidamente e para combater a depressão é-nos administrado um cocktail de drogas que nos leva à euforia, por vezes, ou a termos alucinações, de outras. Penso que a morfina e o LSD serão as mais usadas, se bem que existam outras, sintéticas, às quais nos têm submetido, como cobaias.
O objectivo por detrás desta experiência colectiva, não nos foi comunicado, mas certamente será mais um projecto para estudar o comportamento humano em situações limite.
Posso afirmar que, daquilo que tenho visto (pois faço parte do grupo dos “mudos”), os instintos primários são os que florescem em primeiro lugar, como se achássemos que fodendo, manteremos a nossa sanidade e humanidade. No fundo a vida aqui não difere muito daquela que vislumbrava lá fora, a diferença é que vamos largando os tabus e preconceitos que a sociedade nos vai inoculando, e que assim nos vai castrando, ao longo do nosso crescimeto.
Aqui somos verdadeiramente livres em termos morais, e isso é algo difícil de integrar e aceitar, quando passámos uma vida inteira sendo escravos dessa sociedade podre e hipócrita, à qual, agora, renegámos.
Libertarmo-nos é tão mais difícil do que se julga, que nos foi informado que três de nós já tentaram o suicídio, embora não saibamos que três foram esses, sabendo que não foram bem sucedidos. Tenho quase a certeza, por isso, que somos monotorizados a tempo inteiro, levando-me a concluir que a nossa liberdade de fazer o que queremos é posta em causa assim que tentamos fazer mal a nós próprios; essa é a única coisa que não nos é permitida, daí resultando que essa seja a única liberdade que as pessoas lá fora, aí fora têm ao contrário de nós.
De resto tudo nos é permitido e com o passar do tempo uma maior agressividade se tem vindo a evidenciar entre nós. Até o sexo se tem tornado mais violento, mais selvagem, como se nos estivéssemos a aproximar cada vez mais da nossa animalidade inerente, intrínseca, afastando-nos daquela humanidade à qual nos tentávamos desesperadamente agarrar.
A cada dia que passa, e será que é mesmo a cada dia, ou antes dias, vários dias; vou perdendo a noção de temporalidade; sinto que, aos poucos, os conceitos de passado e futuro se vão esfumando.
A linguagem dos índios Hopi não possui nenhuma palavra para “tempo”, o conceito de temporalidade linear é-lhes completamente desconhecido; o tempo para estes índios não passa de um espaço redondo, onde passado, presente e futuro coexistem em conjunto.
É assim que me sinto, não distinguindo entre dia e noite, dias ou semanas; vou fumando cigarros e lendo romances que põem à minha disposição, e evitando ao máximo o contacto com os outros; o estado depressivo vai-se instalando, aproximando-me cada vez mais daquilo que sentia quando estava lá fora, aí fora… A vida tem uma maneira curiosa de se manifestar, por mais voltas que dermos, por mais limitações ou liberdades que nos forem dadas, o que está dentro de nós vem sempre ao de cima; por mais que tentemos fugir, o monstro que se esconde dentro do armário da nossa mente, irá sempre saltar cá para fora e apanhar-nos.
Sei-o agora, mesmo que tenha sido necessário vir para aqui e mesmo que passe aqui o resto da minha vida, sei que existem pessoas que como eu, não foram feitas para viver lá fora, aí fora, no mundo real e doloroso.

1 Comments:

Blogger 5am said...

Bons textos amigo, keep on doing it...

12:27 da manhã  

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